quarta-feira, 20 de abril de 2011

A sombra entre amigos!

Sou como um espírito que habitou
Nas profundezas do seu coração, e senti
Os seus sentimentos, e pensei os seus pensamentos, e conheci
O discurso mais íntimo da sua alma, o tom só audível
No silêncio do seu sangue,
Quando todos os batimentos
Espelham a calma trémula dos mares de Verão.
Libertei as melodias douradas
Da sua alma profunda, como se chave-mestra tivera,
E nelas mergulhei e me banhei
Como uma águia que em brumas de trovoada
Veste as suas asas de relâmpagos.
Percy Bysshe Shelley
A sombra entre amigos: inveja, raiva e traição
A sombra alberga-se, qual monstro insuspeito, nos nossos amigos mais queridos. Às vezes, sentimos que encontrámos um aliado eterno, que nos acompanhará por toda a parte. Pensamos que já não estamos sozinhos e que um gémeo está connosco. Compreendemo-lo/a sem esforço e sentimo-nos compreendidos. Podemos falar com ele/a como falamos connosco mesmos.
De repente, num momento de choque e incredulidade, sentimo-nos traídos: olhamos e vemos, em vez de um companheiro fidedigno, um coscuvilheiro, ou pior ainda, um mentiroso, que conta os nossos segredos a um estranho. Ou vemos uma mulher fatal sedutora, que tenta aliciar o nosso parceiro. Um trapaceiro que faz coisas ilegais ou ilícitas. Um racista cujas atitudes preconceituosas nos repugnam.
Vemos um inimigo em vez de um amigo e sentimos a nossa inocência estragada, o nosso amor dividido, a nossa confiança traída. O calor suave da amizade esfria e contrai- se, deixando-nos sentimentos de desapontamento, raiva, ressentimento, traição até. Entramos numa espiral de comentários críticos e dolorosos, sem saber se ainda temos realmente um amigo.
Nessas alturas podemos ver que a nossa imagem do amigo ideal, tal com a imagem da família ideal ou do par ideal, nos leva em busca do arquétipo do amigo. Imaginamos um fim para a nossa solidão, uma comunhão de almas, um destino conjunto. Lembramo-nos de pactos de sangue ancestrais e, por isso, a traição torna-se ainda mais poderosa. O traidor tem dentro de si sangue do amigo traído.
Esta imagem arquetípica do amigo leal encerra significados múltiplos, relacionados com a alma e com a sombra. Eros, deus das relações, estabelece laços entre nós, criando empatia, admiração, adoração mesmo. Às vezes, acrescenta desejo sexual a toda esta mistura. O medo desta sexualização faz com que os homens heterossexuais não procurem intimidade, já que transportam consigo a ferida colectiva da homofobia para as suas amizades individuais. As mulheres têm teoricamente mais possibilidades de trocar carinho físico e emocional, beijando-se e chorando juntas. No entanto, também podem conhecer a sombra sexual nos seus afectos mútuos.
Ao invés de um parceiro romântico, o amigo não é um parceiro sexual, embora o laço de amizade que se estabeleceu possa trazer à superfície sentimentos eróticos que nos assustam. Ao invés de um pai ou de uma mãe, o amigo não tem de tomar conta de nós, embora possam ocorrer situações em que se criam sentimentos desconfortáveis de dependência e abandono. Ao invés de um irmão, um amigo não é tipicamente um rival, embora a amizade possa trazer consigo sentimentos de competição, inveja e ciúme.
Ao invés das outras relações, um amigo oferece-nos um espaço no qual podemos sentir-nos especiais. O amigo permite que a nossa especificidade autêntica se possa manifestar. Para muitas pessoas, sentir-se especial é proibido porque pode levar à arrogância, ao desafio e ao pecado do orgulho. Sentir-se especial é perigoso porque isso significa estar em destaque, ficar à parte dos outros, ser objecto de inveja ou ódio.
Mas só quando a nossa especificidade está relacionada com o ego é que assume conotações negativas para os outros ou para nós mesmos. É uma especificidade inautêntica. Por outro lado, a nossa especificidade única a nível da alma é honrada pelo amigo, que consegue ver o infinito na nossa particularidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário